terça-feira, dezembro 26, 2006

A Dança ameaçada pelos OPART

Por José Sasportes
Escritor e historiador de dança no Diário de Notícias

Esta coisa de haver uma lei que tenha a vaidade de se impor a todos é tão irritantemente estúpida como a de haver uma só medida pra todos os chapéus.

Almada Negreiros, A Engomadeira

O Ministério da Cultura anunciou a criação de uma empresa pública denominada com particular infelicidade OPART( Organismos de Produção Artística ) , em que viriam a convergir o Teatro Nacional de S. Carlos e a Companhia Nacional de Bailado (CNB). Este anúncio suscitou comentários adversos de diversos sectores, que têm evidenciado, sobretudo, os danos que tal fusão acarretaria para o S.Carlos, a única casa da ópera portuguesa. Sem discordar desta visão, creio que a instituição mais lesada virá ser a CNB, admitindo mesmo que depois da catastrófica desfundação do Ballet Gulbenkian seja esta a pior notícia que podia atingir o mundo da dança.

A nova lei orgânica do Ministério da Cultura diz que estes OPART contribuirão para o "desenvolvimento da cultura musico-teatral", categoria em si mesma antiquada, que desde logo faz desaparecer o facto coreográfico que constitui a CNB. Recorde-se que quando, em 1946, o Estado assumiu a tutela do S.Carlos declarou que o fazia para "estimular e desenvolver a arte lírica e coreográfica em Portugal", era serôdia já então esta concepção de uma única arte lírico-coreográfica, mas, ao menos, a dança não estava ausente do enunciado, como agora acontece. A verdade é que a dança sempre ocupou pouco espaço na programação do S. Carlos no séc. XX, e idêntica secundarização se afigura inevitável se uma só gestão se vier a impor sobre os interesses artísticos historicamente contraditórios das duas artes. A dança vem sempre em segundo lugar, salvo quando decide em casa própria.

Os equívocos, no entanto, começam logo na decisão de criar esta entidade, sem que qualquer estudo prévio tivesse sido feito sobre o modo melhor de enfrentar os problemas artísticos e administrativos de que pudessem sofrer o Teatro e a Companhia, mas apenas para obedecer aos imperativos do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE ), que visa reduzir, indiscriminadamente, o números de directores e de institutos, assim amalgamando o que, pela sua especificidade, o não pode ser. A tutela, aproveitando esta boleia, e sem ouvir os responsáveis directos pela identidade artística das duas casas, satisfez um desejo ideologicamente motivado de subordinar as artes a um modelo tecnico-administrativo, como é bem demonstrado pelo figurino avançado para os OPART em que os directores artísticos seriam súbditos da administração.

O pior, porém, é o aspecto anacrónico desta opção. A partir da revolução dos Ballets Russes, tornou-se claro que a dança perdia em estar associada aos teatros de ópera, pelo que foi lutando para alcançar sempre maior autonomia e independência. A fórmula de casas da dança ou de centros coreográficos é hoje a mais corrente em toda a Europa, correspondendo ao lugar que a dança granjeou no panorama cultural. O projecto que a Companhia Nacional de Bailado tem estado a desenvolver no Teatro Camões, transformando-o numa autêntica Casa da Dança, graças ao apoio de um mecenas generoso, a EDP, é o que melhor corresponde às necessidades da Companhia e da evolução da dança em Portugal. Mas para que continue a história de sucesso ali iniciada (aumento de quase 200% de público desde 2003 e significativo crescimento de receitas) é indispensável que a CNB continue a mandar naquela Casa sem ver os seus interesses subalternizados aos da ópera, como inevitavelmente sempre acontece.

Os OPART foram lançados sem que antes se tivessem medido as consequências práticas desta opção. A Ministra da Cultura não fez declarações substanciais e não são conhecidos os seus pontos de vista sobre as duas artes, mas já do Secretário de Estado se podem ler singulares interpretações da história do Teatro S. Carlos ou a sua hilariante opinião sobre o Ballet Gulbenkian, segundo a qual a Fundação teria feito melhor em apoiar as alternativas então existentes - Verde Gaio e grupo de Margarida de Abreu -, que representavam o amadorismo que a companhia da Fundação Gulbenkian veio a superar.

Os OPART afiguram-se danosos para as instituições que se pretendem juntar, mas, das duas, a história ensina que a Companhia Nacional de Bailado viria a ser seguramente a mais penalizada. Os teatros nacionais e a CNB carecem de instrumentos de gestão próprios adaptados ao teor artístico de cada um, não se lhe podendo continuar a aplicar formas de gestão importadas de outros sectores da administração pública. Já se ensaiaram os modelos de administração directa, de fundação, de empresa pública, que regressa, e sempre com resultados não convincentes, que ditaram a necessidade das sucessivas mudanças. É tempo de se encontrarem soluções originais e eficazes, sendo indispensável que, agora, em relação aos OPART, o Governo revogue este seu projecto e que, nesta matéria, oiça quem sabe, estude primeiro e decida depois.

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